26 maio 2008

Meias horas

Congelava-se o tempo nas 3 da tarde. Vento calmo.
Dom Tirano, cabelo roliço, pescoço apertado em meio palmo de gente, calça de pano e jeito de esquiço, cosia-se à parede do velho mercado, à sombra de meio quilo de grelos.

- Belo dia, Dom Tirano. Como vai isso?
- Vai vindo, como a morte. Vai indo, como o viço.


Aninhando-se em escuro o sol, Dom Tirano vai-se à sorte, sem comprar nada, roendo maçãs, atado ao postigo do muro. Tira uma a uma, cada bota enraizada, e engole-o o Tejo fundo.
Penduradas na árvore, cá fora, definham lentamente as pegadas de sereio.
Dom Tirano era temente do mundo, doente do umbigo, havia as vezes em que mentia e usava relógio à prova de sal e de frio. Mas não fazia mal a ninguém.
Só não era gente.
Nem conhecia o bem.

02 maio 2008

A vã glória da Revolução Industrial

Vais ser sempre a vidraça de comboio que me trespassa os dias em quilómetros por hora. Ou o meio metro de nó sem corda que prende os limoeiros à flor.
Não tenho bilhete. Queimei todas as viagens em aviõezinhos de papel e entretanto alguém tinha inventado o comboio. E naquele níveo peitoril esquecido na poeira da casa do lado da casa do lado, lá estarei. Debruçada desse lado do lado do lado de dentro do vapor, na medida férrea das linhas das mãos que guardam bagagem sem destino, sem loquete e com o hoje soterrado em apeadeiros devolutos.
O desespero da locomotiva que morre a cada estação é apenas o adeus de não se poder trocar de mundo, como se trocam berlindes.