27 fevereiro 2007

O mundo de açúcar

Era um mundo habilmente fechado num saco de plástico que dedinhos de unhas roídas seguravam enquanto o tempo baloiçava transparentemente nos bolsos rotos. As nuvens espalhavam açúcar nas cabeças dos tubarões verdes e penteavam-se de mais cores que branco, porque as nuvens nunca são só brancas. Havia cerejas deliciosamente azuis que amadureciam sem árvore de fruto e cobras às riscas que serpenteavam nas mãos sujas dos meninos famintos do intervalo da escola. Eles pulavam com desejos de mola de colchão

Para lá...
... para cima.
Para cá...
... para o chão.

A ilusão. Tudo cabia naquela mistura promíscua de sonhos e aventuras de outrora onde os aviõezinhos roxos voavam muito muito alto e colidiam depois com lacinhos cor-de-rosa e ovos estrelados à pressa numa sertã de laranja-esponja com aspecto de algodão doce.
E se fosse. E às vezes era, porque explodiam alí muitas estórias abafadas em pozinhos açucarados que saíam de caixinhas de plástico (que a senhora do avental retirava amavelmente com a sua pinça metálica) para morrerem nos nossos dentes de leite, quando ainda os tínhamos presos à boca.
Mas a escada para esse mundo continua um mistério em degraus.
Porque aquilo eram só gomas.
E as gomas não contam estórias de elevador.
Só dão pulinhos na memória.

21 fevereiro 2007

O carrinho de mão da esquina

Bate à porta um truz, truz, truz
de tamanho arredondado.
É a senhora das flores
e do xaile em ponto cruz
com um cravo avermelhado.
- Não quer levar este encanto de folhas em verde-sopa?
Diz a velhota que é louca
mas sabe bem o diz.
- E isso far-me-ia feliz
ou só me traria dores?
- Não tenha medo das flores,
cara amiga duvidosa,
que as flores não são pessoas
e tornam a vida airosa.

12 fevereiro 2007

Sessão da meia-noite


Limpou os pés ao tapete e deixou as mãos no telhado para saltar melhor na corda do ioiô do miúdo dos calções de bombazina que esperava no quiosque. Ouviram-se aplausos de circo. Gargalhadas de ah ah ah. E as pipocas caíram mastigadas nos bancos onde ninguém assiste ao filme. Os sapatos do miúdo dos calções de bombazina são de fruta adocicada que se derrete na boca das formigas. E as formigas morrem nas poças de água, porque nos dias de chuva não se pode ter sede. As outras crianças esfolam pernas em casa só de ouvirem a música dos anos 30 que chega com sabor a limão. É o homem dos gelados. Fim.
Afinal o homem das bobines enganou-se de filme. Por isso tem as calças rasgadas na perna. De cair no tempo. E por isso vive na bilheteira com os olhos grandes de nuvem. No fim de cada sessão fecha a porta e procura as mãos para segurar no gelado. Agora gosta dos de baunilha.

08 fevereiro 2007

A felicidade

A felicidade come-se às migalhas, mas não se vende aos trigos.
Pode é trincar-se aos bocados e dividir-se com alguém, assim, tipo "Queres um bocado da minha felicidade? É integral, sem sal e faz muito bem à saúde".
Pode misturar-se com outras coisas, cortar-se ao meio, fazer torradas e dar-se aos pombos que esvoaçam nos jardins (onde costumam esvoaçar os pombos). De vez em quando também permite limpar as bancadas ao final do dia com um sorriso que não deixa criar bolor.
Uma pena eu não ser padeira.

01 fevereiro 2007

Desabafo

O lago seria verde do lodo. E verde seria o campo do lado. Mil flores de limoeiros de pé verde. Verde na terra. Verde na água. O vale seria verde, como no filme. O vento viria de força e faria voar os chapéus de fita verde das senhoras que estariam no quadro da sala. A sala seria verde, como a fruta por amadurecer na cesta. E à entrada da porta não haveria uma frase que lembrasse o bom Cesário, o Verde:

"Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer."