28 maio 2007

A escultura

Pergunto eu para mim
na sala do azul desbotado:
- Quem foi que matou assim
a menina do pescoço esbranquiçado
no vestido de cetim?
É que beleza tamanha
não merece estar fechada
numa cara de marfim.

(Para que os pés não se arrepiem nas solas dos sapatos, há que fechar os olhos nas meias. Os museus metem medo. São como os cemitérios.)

21 maio 2007

Noite de enganos

Desenrolou a meia de vidro e puxou-a delicadamente pela perna acima, com medo de se cortar nas mãos. Como se as meias fossem
lâminas de barbear,
facas de talho,
tesouras,
x-actos ou
estilhaços de espelho.

Dum espelho que lhe mostrava todos os dias que o que mais a fazia sangrar era que para os outros não passasse de uma puta. Deslizou o rímel pelos olhos ainda de menina e disse que "hoje é a última vez".
Mas nunca era, porque a vida não é como nos filmes: acontece todos os dias e assobia uma música de terror ao virar da esquina da rua onde algumas pessoas espreitam às janelas antes de irem tentar dormir.

14 maio 2007

Cantiga hipotética a um marinheiro


Por um marinheiro deitei meus brincos ao mar,
mas brincos afundam, não sabem nadar.

Por um marinheiro um lenço eu roubei
mas o vento levou-mo, já lenço não hei.

Veio a noite escura metida no breu
e deixei de ver o marinheiro meu.

Então, por um marinheiro arranquei um cabelo
escondi e enterrei-o no fundo do mar.
Quando o marinheiro decidir trazê-lo
na orla da espuma, na água a amainar,
então eu sei, voltarei a vê-lo,
o tal marinheiro
com sabor a sal.

08 maio 2007

E só bandidos

Porque era mais difícil abrir uma única pestana que fosse, do que subir as antenas do prédio com o tapete ao sol. Porque quando o pó entra nos olhos, não há sacudidela que sirva. Porque devia ser proibido não limpar os pés antes de entrar nos olhos de alguém. Porque se os olhos estivessem fechados à chave-de-pestanas, não entrava lá ladrão nenhum, não é, senhor polícia dos tapetes?

- É sim, menina. Agora com licença, que o sinal está verde e os bandidos vão a 150 Km por hora e não levam espanador...

02 maio 2007

Maria Lena

Era meio-dia e hora de almoçar
e veio a vizinha com o peito em ar:
"Ora, ora que temos nós cá?"
disse de avental todo besuntado
a alcoviteira da Maria Lena.
"Meia dúzia deles, branquinhos em pena!
"Meia dúzia deles para comer já!"

Traz a colher grande, aquela de pau,
vem o sapateiro e traz a frigideira,
vem a aldeia toda descalça na eira
e esfaimada para as omeletes.

O dono da quinta, que tinha olhar mau,
e feitio de olha-com-quem-te-metes
não gostou da brincadeira.
Proibiu comer ovos na Quinta da eira
e não perdeu tempo e deu-lhes um estalo:
ao sapateiro, ao padre, ao caseiro
à das mezinhas e à costureira,
ao das carroças, ao filho, ao merceeiro...

Mas o maior, maior, maior estalo
foi para a Maria Lena das patas de galo.