26 janeiro 2007

Era uma sopa e uma tosta mista, pode ser?

Tinha o medo escondido na ponta dos cabelos. Loiros. Por isso os atava num penteado amigo que dava abraços de elástico verde-alface. Olhava o mar num dia de frio e esperava a visita das ondas com um frasco onde guardava a Lua para fazer marés. Tinha peixes no bolso. Água nos olhos. Era uma praia em calças de ganga à sombra duns óculos de sol. Sorria sozinha à espera que o vento a convidasse para voar num papagaio de papel. Mas fugia sempre antes das duas da tarde. Não porque amainasse o tempo, mas porque era o fim da hora de almoço.
Pagou a conta da esplanada à beira-Tejo, sacudiu a areia dos ombros e levou o frasco do Compal de pêssego, ainda a meio da minha estória.
Fiquei com a mesa só para mim e reparei como as cores do papagaio escorrem pelo tempo fora.

21 janeiro 2007

O segredo da caixa registadora

E então passou por ela, de manta e bola de cristal luminosa, uma bruxa desgrenhada. Pegou-lhe na mão e disse que amanhã iria sonhar com umas escadas que levam a uma torre que demora 100 dias a ser subida. Que chegará lá a cima e terá de saltar para apanhar a maçã que pende de uma árvore de onde nascem folhas em branco à espera que algúem as escreva. Só uma está escrita, no mesmo galho onde falta uma maçã. É uma espécie de desafio onde só uma pessoa deve ter passado, porque nessa folha está escrito a sangue:

"Aos que morrem por ter provado o amor".

Mas ela não acreditava nas bruxas, nem nas palavras, nem nos contos.
Porque as maçãs de supermercado são mais baratas.

17 janeiro 2007

Livro da Primária, página 26


(Às vezes a lembrança cheira a livros, não é?)

A menina dos olhos cor de ervilha
comia favas e nabos, corria de maravilha.
Lavava os dente com menta
e dava saltos de milha.
Mas porque sendo castanhos,
teria os olhos de ervilha?
- Havia ervilhas castanhas?
- Ou castanho cor de ervilha?

Quem escreveu isto não sabe,
quem está a ler não saberá.
Porque o mistério das coisas
é o mais lindo que há!

09 janeiro 2007

Caleidoscópio

Os olhos castanhos quando choram ficam todos enlameados.
Por isso, há que aproveitar sempre os dias de sol para plantar couves: couves para caldo-verde, couves para cozido à portuguesa, couves para batatas cozidas com couves, couves para serem couves e terem lagartas das couves.
As lagartas das couves que se arrastam com o seu meio corpo mole de cada vez são bonitas de se verem. Às vezes, quando se abana a folha da couve, elas caem na terra castanha e morrem com os olhos.
(Há pessoas monstruosas nos dias de sol.)
Mas a culpa toda é dos olhos castanhos, porque não são azuis.
E não têm aquários com peixes lá dentro.

05 janeiro 2007

Por vezes, de manhã...

Não quero e sei, mas temo, não olho, dois olhos, sem testa, atesta? Sei lá, depende, ou não, o que é isto? Um nome, um sumiço, sem estrada, com fome, mais nada, sem telha, vestido, entupido, telefone, tens fome, pequena? Toma lá um euro, um tesouro, a revista no final da rua, a tua. Um quadrado em janela, cortina, uma tela, no chão uma espada, no vidro a entrada, salada. Chego-me a um canto, o encanto de ter estado antes ali.
É então que chega a senhora da IURD com o seu colar de pérolas reluzentes ao pé de mim e diz:
"- A menina sabia que a chegada do Reino dos Céus está próxima?".

02 janeiro 2007

325, 3º Frente


Do varandim esperneavam collants pretos de senhora, blusas de seda fina e uma toalha de mesa rendilhada no mais puro linho. Um estendal requintado que fazia inveja ao meu alguidar do Sábado de manhã que raramente tem as meias todas aos pares para dependurar. Semana a semana, a janela que transpirava música clássica às 9 da noite fazia uma nova aparição de bordados, matizes e disposição de panos que nunca iam para além do preto e do branco - quanto muito umas cortinas a fugirem para o beige, talvez amareladas pela solidão de quem tapa janelas.

"É a professora de piano do 3º andar, diz que estende as peças de roupa como as teclas, é maluca!"

Normalmente as pessoas falam do que não sabem. É o caso da minha vizinha da esquerda, que gosta muito de falar dos outros enquanto me alerta semanalmente para o aumento do preço do atum em lata:

"Menina, olhe que já vai em mais 2 cêntimos, previna-se, que a vida não está fácil".

Pois não deve estar, Dona Adélia, disse eu, que nem compro o atum pelo qual me interesso só para falar com ela no vão das escadas do prédio sobre as novidades do Bairro.
De facto, a mulher do estendal requintado conjugava num zig zag de freira as peças de roupa ao longo da corda do varandim. Eu acho aquilo bonito e tento demorar mais tempo a pôr as molas na minha roupa só para ver a dela. A Dona Adélia, sem perceber que o meu sorriso é para um estendal, acena-me com o seu braço de 5º andar como quem vai abrir mais uma lata de atum para o almoço dela e do gato, eu retribuo ao longe, faço um esforço por não deixar cair nenhum vestido aos fundos do condomínio e a vida continua.

Não entendo nada de música, mas acho que o gato da Dona Adélia mia em Fá sustenido.