30 novembro 2006

Sorriam, que há festa


Algures no reino, havia serão.
Um bobo da corte, um baile, um flautista.
No meio da pista pergunta o poeta:
- A menina dança?
- Só com o trapezista.
E valsa vai e valsar bem
e olhar vai e olhar vem.
- Desculpe que insista...
Teimava o das letras com amena voz.
- Não serei eu digno de dançar com Vós?
Correram os passos na sala dourada.
Entre a cabra-cega e a apanhada,
o mor jogo em cena chamava-se amor.
De mãos enlaçadas, no centro da pista,
dançava a menina com o trapezista.
E entre as cortinas, bem longe da vista,
chorava o poeta com os olhos em dor.

28 novembro 2006

Um arrepio e 3 silêncios, por favor

Schiu!!!
Não incomodem as cores.
O seu descanso é sagrado como os lírios do campo. Só de tremer o pincel, pode estragar-se um branco, torná-lo verde, torná-lo rosa. Uma rosa num vaso que desmaia em pétalas num estender de tons e padrões semelhante ao vendedor de tecidos que desenrola os panos num dia de sol. Um sol amarelo e brilhante.

Schiu!!!
Não tremam de medo, que as cores não mordem, só matam. Por isso é preciso deixá-las dormir e não mexer nelas, porque o que cravam nos olhos estende-se ao peito e deixa marcas de azul. De um azul-marinho com traços de espuma e fios laranja que cosem o coração ao papel. É uma operação delicada, delicada como uns lábios de mulher que escondem sorrisos po detrás do carmim.

Schiu!!!
Não queiram brincar com o arco-íris, deixem-no envelhecer parado no cinzento das barbas de um velhote cego. É que o mundo pode voltar outra vez a ser a cores, e as fotografias a preto e branco são tão bonitas. Que bonitas que são as fotografias a preto e branco.
Guardam as demais cores nos olhos do fotógrafo...

23 novembro 2006

Uma formiga perdida

Uma formiga saíra do meio da roupa do cesto.
Do cesto que saíra de casa no braço e na anca dela.
Dela que usava corpete apertado e saia de chita por fora das ancas.
Dela que saíra para lavar roupa numa Cantiga de Amigo de há muito tempo.
Do tempo em que não havia máquinas de lavar e secar a roupa e se ia para as fontes.
Do tempo em que os pinheiros entravam nos poemas e os poemas nas iluminuras.
Do tempo em que as bilhas de barro guardavam a água e a água guardava segredos.
E os segredos rimavam nas mãos dum jogral que esperava na fonte.
Não sei o que foi feito da formiga que saiu do cesto.
Nem do cesto, nem da rapariga, nem das fontes, nem das bilhas de barro, nem dos segredos, nem dos jograis, nem das Cantigas de Amigo.

21 novembro 2006

O espantalho

Farrapos na cara e pernas de vassoura com pedras no peito faziam-lhe o ser. Parecia puxado do "Feiticeiro de Oz" com uma âncora. Pesavam-lhe os pássaros e a vida de boneco de Vudu gigante e dependurado no meio do milho no campo. Tinha os ombros carregados de tempo.
O coração tinha-lho comido um corvo e sentir sentir, já só sentia a brisa de Verão que lhe roçava a cara de feno. Tinha sonhos de gente em palhas douradas como um Menino Jesus de presépio, mas para ele não valia pedir desejos de Natal, porque a morte chegava sempre em Setembro, quando terminavam as colheitas e o desciam da cruz, como na Páscoa.

20 novembro 2006

Ainda em Lisboa

Sentou-se.
Lembrou-se talvez.
Chegou-se ao balcão e disse: "Quero um fino".
Chegou o fino e afinou-se a garganta para um fado.
Um fado triste, um fado fado.
Bebeu-o duma vez, o fino.
Escutou-o duma vez, o fado.
Lembrou-se talvez.
Sentou-se outra vez.
E foi-se em tristeza,
Qual bom português.

15 novembro 2006

Segunda-feira


Correste a cortina e disseste que o ontem tinha menos azul.
Que é no Verão que o cabelo cresce mais.
Que tinhas vontade de comer um pacote de Sugus.
Que quanto demorava a descongelar um frango no microondas.
Depois fugiste no tempo.
Depois voltaste sem relógio de pulso e disseste 20 minutos.
Mas na verdade não temos microondas.
Por isso nunca matamos as galinhas do vizinho ao Domingo.

14 novembro 2006

Alerta em RGB

O botão puxou-me a mão e carregou-ma no tal canal:

Vi um pacote de droga, um homem morto e outro demente,
depois raptaram uma filha, o resumo da Floribella,
a filha aparece, vem a mãe toda contente,
um cão descobre que sabe cantar, os portugueses estão obesos,
mais uma greve, um cartaz com "ESTAMOS TESOS!!",
a quase nua diz que quer ser actriz,
mais iogurtes magros, um que não paga o que deve,
um emigrante sem rins, uma cara operada, outra feliz,
explodem pessoas no Iraque,
vem a crise, o défice, o dilúvio, um ataque,
estão a chegar as compras do Natal
e eu já não aguento mais.
Obrigo a mão a carregar no botão do Off e digo-lhe:
"Que seja a última vez que me obrigas a ver um telejornal!"

13 novembro 2006

Aliteração

Seriam seis horas de um Sábado.
E o senhor sentado no segundo piso disse-me:

- Sabe?
- Sim, sei, e o senhor, sabe?
- Sei lá, se calhar sei... É possível.
- Saber, saber, só sabe que se calhar é possível, é isso?
- Sim, só sei isso.
- Pois é, a saudade não se sabe...
- Pois não, só se sente.

Sem saber segurar a conversa, sorri sem mais.

- Saudações, senhor dos sentimentos sentidos!
- Saudações sem saber nada de si, menina!

O Sábado prosseguiu e eu saí do segundo piso desse sítio.
E sentia saudades.

-Seria?

09 novembro 2006

Corda + rapariga + saltos = rã no tempo

Saltas à corda nos raios de sol, rapariga da saia às pregas.
Saltas até se te pisarem os pés que trazes escondidos no bolso das meias. Sobes e desces na gravidade do teu intervalo de aulas enquanto a saia das pregas salta contigo e espera que não a troques por umas calças de ganga justas. Tens pernas de pulga e patas de rã. És um anfíbio e meia pessoa. Saltas à corda até chegares lá cima, à altura de não quereres mais saltar à corda. Saltas e saltas num zig-zag dos olhos de quem te olha e te inveja por não saber já saltar.
Como eu queria tanto ser saltitona de cordas como tu.
E agora fazes um balão com a tua pastilha elástica e eu sei, és mesmo tu, uma rã no tempo com saia verde e às pregas. Com trampolins atados nas ancas e saia às pregas que esvoaça com o vento enquanto a campainha toca.
Gostei de ter passado por ti na rua.
Salvaste-me o dia.

06 novembro 2006

Fotossíntese


Engraxaste os sapatos de verde à espera que te nascessem folhas nos ouvidos.
Querias ouvir os livros.
Querias que as palavras te crescessem como relva nos dedos dos pés.
Querias que a ementa fosse sopa de letras.
E tragaste tudo até ao fim.
Apanha o guardanapo e limpa-me essa boca!
Sujas-te sempre quando escreves.

Emoções a preto e branco

Hoje de manhã afoguei-me no café que me abriu o jornal da mesa nas páginas da necrologia.
Tanta "paz às suas almas" e tanto poema que rima e boas pessoas e famílias unidas e ramos de rosas e sentimentos para dar e estórias felizes e vidas perfeitas e esposas carinhosas e filhos trabalhadores e desinteresse pelo dinheiro e vida eterna e pessoas sem borbulhas e bem vestidas e amor, muito amor, sobretudo amor verdadeiro. Amor.
Emocionei-me a preto e branco com as fotografias tipo passe.
Estas são as únicas páginas que fazem sentido no jornal:
não se contam desgraças,
todos são perfeitos e virtuosos
e aparecem várias vezes as palavras saudade e amor em letras gordas.
Tive uma sensação estranha e fui pagar o café.

02 novembro 2006

___L___I___N___H___A___

E com um bocejo delicado, zás!
Ela escorregou pelo caderno fora
e deixou-se dormir no branco.

A linha do comboio saltou numas pernas dentro da_____
linha da agulha que estava espetada nos olhos da_______
linha do horizonte que morria azulada na tela da_________
linha do artista que ia sendo traçada quando a______________
linha do telefone estivesse cortada pelos sinais da______________
linha da mão que era desvendada na boca da____________________
linha do anzol que morria pescada ao ver a donzela que na
linha do linho fiava sentada.________________________________

Por isso a linha sonhava.______________________________
Porque acordada era infinitamente triste. ___________
Então agarrava-se às letras num sono profundo,__
e cosia-se a elas para não morrer sozinha.__

Fim-de-linha