31 outubro 2006

O Janeiro dos números

Gosto do 1.
É sozinho. É sozinho mas vai bem com todos os números. É solidário. É sempre o primeiro a chegar e o que ganha os prémios. É o que começa as coisas pelo princípio. O que fica na memória. O melhor amigo do 2 e do 3 nas corridas. O que se guarda com carinho porque é único. O vizinho do zero. O que se perde e se chora a vida inteira porque não há outro igual a ele. O que salvou a vida da bela Sherazade nas "Mil e uma noites". (Que teria sido dela sem a última noite?) O 1. O que cabe em todo o lado. O que se dá e se tira e se rouba como um beijo porque "é só um". O numeral que é também artigo indefinido masculino singular.
O 1 foi a grande inveja do Fernando Pessoa.

30 outubro 2006

Notícias de Truffaut

Uma mão com um buraco do tamanho do mundo deixou fugir de lá a humanidade em chamas. Segundo os bombeiros, o cadáver não foi encontrado no incêndio. Apenas apareceram algumas unhas porque o prédio tinha ardido com o estalar dos dedos. A única testemunha vivente diz chamar-se Prometeu e afirma que tudo começou com a invenção do isqueiro enquanto se lê um livro. Entretanto, os meteorologistas alertam que para os próximos dias as temperaturas podem atingir os 451º Fahrenheit.

28 outubro 2006

O longe é um ladrão medonho


Verde e terra e musgo e mais terra e muita terra e erva e giestas e pinheiros e campos lavrados e mais cheiro a terra. Mais vacas e galinhas à solta e miúdos à solta e vindimas e gente que troca o "B" pelo "V" e diz vários palavrões na mesma frase e carroças e espigueiros donde saem ratos que roem o milho todo e moreias de palha e escaravelhos das batatas que voam como joaninhas e grilos e sapos e ouriços cacheiros e outros animais saltantes e magustos com castanhas a sério das que têm bichos. E ainda cair nas poças ao saltar pedras e chegar molhada a casa e ver que um morcego me entrou pela janela dentro e não consegue sair porque acendi a luz e então ele bate contra a parede e cai e eu pego nele e vejo por fim de perto como é a cara de um morcego e fico maravilhada.

O longe anda-me a ficar com muitas coisas.

26 outubro 2006

Quando se pinta sem dedos

Abri os olhos e do bolso tirei uma pestana.
Pedi um desejo.
Subi a rua, desci na vida
e ao olhar para baixo tinha as botas cheias de lama.
Perdi o desejo.
Fiz-te o jantar, guardei o pó e limpei o troco.
(Sim, com algodão, para não riscar sensibilidades.)
Desculpa, o padeiro não tinha pão de sementes,
"podem fazer crescer sonhos na barriga!",
disse-me, enquanto me sorriu sem dentes.

25 outubro 2006

Dentro da caixa

Ao abrir...

Reparo sempre que ela própria não consegue dar à corda a sua própria manivela de bailarina de caixinha-de-música.
Reparo sempre que as mãos não chegam às costas, estão sempre na mesma posição: levantadas para o tecto, como as pontas dos pés e dos cabelos.
Reparo sempre que é um corpo esticado em "i" que roda com as notas musicais e faz rimas de coisas que ouve da boca de quem abre a caixa: sonho, senha, ranho, lenha, canto, acanto... - Que são folhas de acanto? Pensará ela, mas nunca me diz nada, só se olha ao espelho da tampa da caixinha que a engole no escuro sempre que ninguém lhe dá à corda.
Reparo sempre que é uma cariátide no vazio, sem nada que segurar para além da imensidão do nada quadrado duma caixa que a melodia do xilofone martela.
Reparo sempre que é um corpo rotativo de pés presos onde só a cabeça e o coração voam em sonhos.

Ao fechar...
Reparo sempre que me pareço a ela e por isso volto a abrir a caixa e faço-lhe companhia.

20 outubro 2006

Hino

Um hino ao menino.
Ao que apanha um gambozino.
À alface e ao pepino.
Ao gordo, ao médio, ao fino.
Ao dia mais pequenino.
Às dores de intestino.
Ao que toca violino.
Ao dos Beatles amarelo submarino.
Aos castelos, à torre com sino.
Às pessoas com pouco tino.
A quem se chama Albino.
A mim, a ti e a todos e com isto termino.

19 outubro 2006

Apatia mental no kit de costura

Hoje não quero saber nada.
Perguntadores e curiosos e outros desconhecidos ou conhecidos que não sabem ter a boca fechada de perguntas: NÃO ESTOU, escondi-me num fecho éclair e perdi as mãos.
Não quero saber que horas são, se sei onde fica a Rua Augusta, o tempo que dão para amanhã, o que vou fazer para o jantar, para que andar vou quando carregam no botãozinho dos número primeiro do que eu, se estou bem e como tenho andado, quem é o próximo amigo a fazer anos a quem eu me vou esquecer de dizer alguma coisa, onde foi que eu já ouvi isto, se não sei o que se passa na Coreia do Norte, se apaguei o esquentador... Por mim que expluda tudo. Não quero saber de nada. Não estou com paciência para saber coisas. Quero a minha almofada e um temporizador milenar.
Acordem-me quando o filme “O planeta dos macacos, 1968” estiver naquela parte do casal astronauta - rapariga primitiva que passeia na praia e vê as ruínas da Estátua da Liberdade enterradas na areia. Já devo estar melhor.
Agora fui e levo alfinetes comigo.

18 outubro 2006

Gato


Rasga a unha cheia de rato o gato da minha varanda.
Não corre, não mia, não anda.
É gato de faz-de-conta.
Sempre à espreita duma espinha,
Mas sempre espinha nem vê-la.
- Que fará ele à janela?
- Que fará ele na minha?
A noite deu-lhe um luar.
O preto fica-lhe bem.
É gato de fantasia.
Não anda, não corre, não mia.
É gato sem se prender a uma vida vezes sete
E ao depressa que se morre.
Não mia, não anda, não corre.
É gato de prateleira.
Que me deram e eu não sei.
Que me deram e eu quebrei.
Que me arranha e eu deixei.

16 outubro 2006

O ano do sapo

Em Janeiro enterrou o frio na cabeça por não ter gorro. Cobriu-se de raízes de gato parido em Fevereiro e com o cheiro a flores arrancadas em Março limpou os ouvidos. Escorria-lhe a inutilidade dum coelho de chocolate derretido na Páscoa quando calha em Abril e se tem diabetes. Leu as notícias e decidiu hibernar em Maio para não ir a Fátima de merenda às costas. Passou assim o Junho, o Julho e o Agosto a fechar os olhos ao sol e ficou toupeira. Em Setembro, cheio de noite nos olhos, escutou de regresso às aulas os pés das criancinhas ansiosos por lhe esmagarem a cabeça. Mas foi só em Outubro que lhe coseram a boca. Era um bruxedo para o dia 31. No mês de Novembro saiu da toca e as linhas dos pontos tinham apodrecido por comer sopa. Chegado Dezembro, chegou também a hora da sua existência: a hora do sapo desejar à família FELIZ NATAL à lareira. Pena que o Pai Natal continue a descer pela chaminé e a aterrar o seu cu gordo sem avisar.

MORAL DA ESTÓRIA: o horóscopo tem sempre razão e quando há menos um elemento presente na ceia de Natal, toca sempre uma fatia de bolo-rei mais grossa.

10 outubro 2006

A Lua nos pés

Gostava de ver as coisas de cabeça para baixo.
Como o dependurado das cartas de Tarot. Era assim e fazia parte dele. Era louco, diziam, mas para mim cuspia pela boca as frases mais sábias que ouvi.
Cortava as unhas e achava que dos pés sujos tinha feito surgir guerras e batalhas turcas com crescentes vermelhos, mouros, donzelas de túnicas e cristãos-novos. Pegava em cada unha e escolhia para ela um Quarto-crescente ou um Quarto-minguante. Era só virá-la ao contrário para o céu. "Que nojo!", deixou fugir alguém dum banco do jardim onde eu almoço.
Eu continuava pasmada e a ouvir a mente do senhor das barbas e dos bolsos cheios de lixos escorrer ideias. Era para mim a primeira pessoa com luas nos pés. Eu que sempre pensara que o mais afoito era conseguir ter os pés na Lua...
Amanhã vou sentar-me no mesmo jardim. No mesmo banco. Esperando que ele volte.
Gosto dos loucos.

09 outubro 2006

Laura

Desenhou com os dedos uma palavra no lençol.
Tinha traço de dor e escondia um sentimento inacabado.
Havia que o arrancar da cama e enfiá-lo rapidamente na máquina de lavar a 90º com amaciador de sonhos.
Com várias medidas de tira-nódoas e tira-mágoas.
Para não cheirar a passado.
Nem feder a remédios.
Para que desse as voltas suficientes no tambor até perder a noção das direitas e dos avessos, como um moribundo entalado na Roda da Fortuna de cabeça para baixo e a sangrar pelo nariz.
Para o estender no meio das camisolas e meias e batas sem dar nas vistas.
Sem ser mais do que um lençol.
Um lençol branco cagado pelas moscas.
Que a rapariga da limpeza mimava todos os dias, pois sabia que sonos lhe tinham morrido naquela noite.
Tinha a memória na ponta dos dedos.
E costumava passeá-la pelas camas de hospital escrevendo diários que só ela lia.
Chamava-se Laura.

07 outubro 2006

Devaneio de Outono


O dia espreitava pelo calendário de mesa. Abri a janela com um bocejo e esperei ser Domingo de Páscoa para comer um doce dos que fazem aftas na língua, mas o cinzento do dia de chuva apagou-me a luz dos olhos que tinha ainda fechados. Vi-te, menino da sacola que vieste não sei de onde e que te sentas nas escadas que me entram pela janela e me fazem sofrer com os olhos a escorrer ideias tolas. Obrigaste-me a sonhar em pijama com a cabeça de há 15 anos... "Um dó-li-tá..." Salta comigo à corda menino, deixa que salte contigo e dê pulos e pinotes nas pedras da estrada que serpenteiam o caminho da Terra dos teus Sonhos. Vamos chapinhar nas poças de água, ficar doentes para tomar xarope que sabe a morango, boa? Já sei, sonhas comigo hoje? Vá lá.... Só um bocadinho... enquanto ambos rasgamos os calções por escorregar pelos corrimões das escadarias da escola abaixo. Limpa o canto da boca, menino, que quero que seja segredo que te dei metade da minha merenda. Não queiras mostrar ao mundo de que cor são as migalhas das bolachas que se partilham como a amizade. Será o nosso segredo escondido da humanidade intelectual que quer desvendar tudo para além das estratosferas da ciência e da física.

Olha os cordões, menino, não vás tropeçar no degrau da fantasia, olha que a queda pode ser perigosa! O hospital de loucos está cheio e há ainda um longo caminho a percorrer. É isso, traçaremos um mapa com várias escalas, serás o meu guia e eu a tua bússola sem ponteiros. Tu dá-me a mão que logo verás o que nos espera... Mas não te habitues a ela, a minha mão é de pulga e quando saltar nunca mais a verás. Corre, corre, menino, que o tempo vem por ti e tu tens que o deixar passar à frente, tens, mas podes sempre fazer-lhe umas fintas, como quem engana um rato com dedos que cheiram a queijo e a pêlo de gato escondido na porta. É triste ter de perder com o tempo, mas ele tem barbas grandes e enroladas nos dias e o vento empurra os desejos das velas dos bolos de anos. É um vento da boca que sai quente com calor do peito de quem tem ainda coração. Tens tosse, menino? Pega no meu lenço, tosse à vontade, tosse, tosse e assoa-te, que o teu ranho tem a pureza das coisas, sofre da elasticidade das ideias lindas que dão para os dias de querer chorar. "Sim, não, sim, não..." Escolhe comigo uma cor de segredo, mas diz-ma ao ouvido, tu vê lá que não se espalhe com o pó das estrelas que aparecem de noite quando os grilos saltam com sabrinas de bailarinos de circo e lavam a cara com o orvalho do cedo entre a noite e o dia.

"Que linda falua, que lá vem, lá vem..." Como és sábio, menino, se calhar é melhor dormirmos, é. Deixa o sono entrar pela frincha dos olhos, fecha-lhe as pestanas que o tempo vem já... O tempo vem sempre, menino... Sempre.... Não esperes por ele. Dá-me a mão. A mão que usas para coçar a cabeça e carregar a tua sacola de mistérios cheia de inocência e aparas de lápis de cera... Ao dormir, esquece-te de mim, menino, não é bom lembrar. Amanhã verás mais gente, eu verei mais meninos e ambos seremos estranhos, porque na verdade nunca nos conhecemos. Assim não terei que cortar o teu laço e saberei sorrir sem fechar a boca de tristezas... Para adormecer, cantemos... "Um dó-li-tá, cara de amendoá, um segredo colorido, quem está livre livre está...". Tu já estás livre, menino. Vai. Eu fico à espera do bicho papão que me liberte do jogo da infância. Acho que já chegou... Entrou-me pelo despertador e chamou-me "Trim Trim" várias vezes. Eu respondo calçando um par 37 e indo trabalhar como todos os dias. Sou livre, fecho a janela e tu és livre de mim, porque nunca me viste. Quando desço passo por ti na montra dos sapatos e tu olhas-me, mas não sabes que já viajámos juntos. E eu sigo em frente, porque amanhã tenho que inventar mais alguém no meu devaneio matinal.
Agora vou apanhar o metro.

06 outubro 2006

No meu bairro

Lavara as mãos em sangue antes de jantar tremoços.
Era a educação dos limpos.
Dos Judas de espelho em casa e palito na boca.
Dos sem culpa numa vida de lavatório com germes.
Era fácil não querer saber dos outros.
Do gato, da mãe acamada, do filho sem papa e sem dentes ainda.
Do filho que dizia não ser seu enquanto se coçava e via o futebol.
- És uma puta! E tenho mais em que gastar o meu dinheiro.
E estava feita a oração antes da ceia.
E da varanda que é também sala de estar, subia o fumo da mulher do batom vermelho que aquecia a rua.
- Mas que caralho pensas que é isto?
E havia menos um prato inteiro que lavar.
Se a conta da água estivesse paga.
Se houvesse água em casa.
Choro, vidro, golo, menos outro prato, ralho, estalo, grito, copo voador, berro, copo partido no chão, tremoço, vizinho apaga a luz, falta, casca de tremoço, murro, intervalo de jogo, outro vizinho finge que não está a ver nada, resultado 2-1, pum, silêncio.
Sirene do INEM.
Quando alguém leva um tiro no meu bairro, aparece sempre a sirene do INEM apegada a uma ambulância amarela.
Depois volta a haver silêncio, fecha-se tudo em casa, os gatos esgueiram-se por entre os caixotes do lixo podre que ninguém recolhe e a mulher do batom vermelho desaparece nuns mínimos que fogem de carro.
Eu vou lavar os dentes e tentar dormir.
Mas nem sempre consigo...

05 outubro 2006

Casamento com final feliz

Uma abelha voou por engano sobre um canteiro de cores muitas e vivas. E bastou-lhe o equívoco, pois todos os dias ela passava, só para sentir o jasmineiro do portão que a encantara. O zumbir dos dias unira-os. Foi então que a filha do jardineiro casou com o filho do dono da casa do portão onde crescia o jasmineiro e decidiu: "Quero um ramo de jasmins!". A abelha quando passou e viu o portão nu de plantas, sentiu o sangue nas riscas e seguiu o aroma do seu amigo azul.
Picou a noiva no braço.
E o sacramento do Santo Matrimónio cumpriu-se.
Pisados no adro da igreja entre grãos de arroz agulha e carolino, a abelha e o jasmineiro ficaram unidos para sempre por uma sola de sapato Armani.

Memorial “M”


Mãe, Mãe Morta, Mão Morta, Mais Mortos, Mais Moscas, Micróbios, Mais, Marconi, Manteiga Mordida, Macau, Miau, Marcador Molhado, Marilyn Moroe, Malhar Milho, Maré, Mar Morto, Meia Manta, Meia Manga, Mango, Mistério, Minério, Mac Luhan Mijando, Miró, Maria Mãe, Monalisa, Moribundos, Modigliani, Marisa Monte, Marrocos, Maria Madalena, Mealheiros Molhados, Máscaras, Mitos, Mirtilhos, Marcello Mastroiani, Medusa, Musa, Munch, Massa Milanesa, Macarrão Mole, Martim Moniz, Mudar Meias, Madagáscar, Madonna, Mármores Moles, Manuela Machado, Micado, Massacres Medievais, Maomé, Mé-Mé, Martelos, Maçãs, Manhãs, Manuel Monteiro, Morangueiro, Moçambique, Marat, Marinheiros, Minhocas Mansas, Maria Matos, Millet, Montanha, Mentiras, Muletas, Marionetas, Molière Maluco, Montesquieu, Macacos Migratórios, Moisés Matando Mulheres, Mefistófeles, Mozart, Manequim, Mundo, Marmelada Magenta, Micose, Mutante, Mirante, Militante, Muitos Mais, Muito Mais, Milhões, Miúdos Maus, Mordomos Maricas, Mendigos Milionários, Marilyn Manson Mastigando M & Ms, Mercenários, Misturas, Moedas, Menos, Mais. Mulheres Mães.

04 outubro 2006

O senhor das escadas

Da minha janela vejo todos os dias o senhor das escadas. Não sei mais nada dele. Sei que é um senhor e que sobe e desce as escadas que vejo daqui. Desta janela. É velhote. Tem o peso dos anos em cada degrau que pisa. Sobe e desce e desce e sobe e pára e olha e desce e continua a descer e a subir, apoiado na bengala que não faz de perna, mas anda sempre com ele sem poder andar como andam as pernas de quem é novo. Mas ele é novo, para mim, que não falei ainda com o senhor das escadas. Vai ser hoje. Vou descer as escadas quando ele as subir e vou olhá-lo nos olhos e ver se é boa pessoa. Se for, dou-lhe um sorriso gigante e digo "Olá!" e desço o resto das escadas, inventando-lhe a vida na minha cabeça enquanto ele pensa: "Estas raparigas de agora são umas desavergonhadas, nem os velhos escapam!"

03 outubro 2006

A boneca de porcelana

Tinha uns olhos de vidro espelhado com reflexos de rio. Dos que tiritavam de frio quando sentiam coisas que a faziam chorar gelo. Era frágil. Excessivamente frágil. Era um defeito de fabrico que a tornara incrivelmente capaz de se cortar com as lágrimas sem que os outros notassem. "É só uma boneca, é a fingir", diziam sem saber que ela tinha facas nos olhos. Era um sofrer em cacos escondido num sorriso decotado com vontade de engolir o mundo dos Contos de Fadas. Com vontade de acordar no ontem antes que o amanhã espreitasse na frincha da sua janela de Loja de Bonecas. Com vontade de abrir o livro dos desejos para um feiticeiro de coração puro. Por isso sonhava tantas coisas. Queria viver numa prateleira de alfarrabista para espirrar pós de perlimpimpim, queria ter asas, ser grilo, andar de gatas, chapinhar nas paletes dos pintores incompreendidos, comer framboesas na floresta dos gnomos, dormir no sono dos poetas, ser fada, ser louca, ser chuva, ter estrelas no bolso, dormir na lua, andar às cavalitas dos pirilampos, correr por um campo de trigo e perder o chapéu com a etiqueta "Made in China". Mas isso não era possível, porque era boneca. Não era, mas era como se fosse. Era mais porcelana do que boneca, afinal. Era triste, mas com traços de querer ser alegre. Por isso sonhava acordada e tentava não quebrar dentro da sua caixa de plástico onde estava marcado "Promoção: agora só 5 euros".